quarta-feira, 18 de julho de 2007

O guarda e a ordem



O quão responsável cada um de nós é com a manutenção e a reprodução da ordem? Hoje volto a me perguntar o que por longo tempo evito. Não sei se fará sentido dizer isso, mas aqueles que, identificados como rebeldes, tendem a identificar em certas figuras ou posições sociais engrenagens ou peças fundamentais da guarnição da ordem. Digo: aqueles ligados ao Estado – juízes, delegados, policiais, funcionários; aqueles ligados ao mercado – patrões, gerentes, supervisores, proprietários; aqueles ligados aos dogmas espirituais/ideológicos – padres, sacerdotes, papas, pastores; além, obviamente, daqueles que cumprem funções e papéis híbridos. Todos são importantes bastiões da reprodução desse mundo injusto, opressor, hierárquico, capitalista. Certo.

Eventualmente somos capazes de realizar um exercício curioso: separar os seres humanos que encarnam esses papéis dos papéis que encarnam os seres humanos. Assim somos capazes de encontrar missionários que se recusam a converter aborígenes, policiais que questionam seus superiores e hesitam agredir populações desarmadas, coletores de impostos que fazem vistas grossas aos deveres fiscais de camponeses endividados e famintos. Como também o contrário: revolucionários tiranos, anarco-psicopatas, humanistas eugenistas... Não me parece uma reflexão complicada de se engendrar. Mas o limite do julgamento ético é sempre complexo: até que ponto há uma decisão humana ou uma ação desencadeada pela necessidade da posição e do papel incorporado pelo homem? Não quero cair num relativismo estéril. Assumo, como certa vez apontou Marx, que a herança sempre se apropria de seu herdeiro. De modo que internalizo a máxima indignação e radical oposição a todas as funções e papéis sociais relacionados diretamente ao mundo burguês, patriarcal, homofóbico, racista, etnocêntrico e hierárquico. Entretanto, entendo também que o homem não se reduz jamais àquilo que representa, e sempre pode resistir a qualquer ordem de enquadramento e disciplinamento. Ele pode rejeitar a sua herança!

Hoje, 18 de julho de 2007. Hoje isso faz mais sentido do que nunca. Hoje isso me é mais claro que até então tinha sido. 18 de julho de 2007. Estive num posto de saúde no bairro do Catete, no Rio. Um pouco febrel, algum sintoma de sinusite. Dois dias ruins, a cabeça latejante, o corpo escorrendo. Pouco mais de 16hs, fui ao posto médico, com aquela convicção típica da classe média consciente de seus direitos e blá-blá-blá. Disposto a discutir, a chamar polícia, Ministério Público, o caralho que o valha, se não fosse atendido. Assim entrei no posto de saúde do Catete. Minha primeira visão, diante dos portais de um velho casarão enfaixado de cartazes do SUS e todo tipo de propaganda de saúde governamental: NÃO ATENDEMOS URGÊNCIA! “Como não? Dúvido que não há um médico aí dentro capaz de me receitar um simples medicamento!”, pensei comigo. “Psssiiiit, psssiiiiit, pssiiiit”, foi o que ouvi de um segurança trajando azul-bebê. Fitei-o. Estava a um metro de mim. Com os olhos, mostrei que iria entrar. Ele se aproximou e disse que não havia ninguém para atender... o expediente para se encerrar. “O que você tem?”, perguntou o guarda. “Ora amigo, eu preciso de um médico, e vou falar com alguém que trabalha aí dentro!”, respondi com sinais de ira na face. E ele continuava, “Mas o que você tem?”. “Ai, cara, tenho sintomas de sinusite, preciso de um médico, e vou entrar”, retruquei já entrando no posto. Nisso o segurança, um homem negro calmo com seus 40 e poucos anos, me pediu para segui-lo. Ele entrou, falou com um funcionário que se negou a dar muita informação. Ao meu lado, contornou todo o recinto em busca de um médico, ele próprio, interpelando todos os funcionários para que disponibilizassem um antendimento naquele instante. Me indicou até o caminho da farmácia, caso necessitasse de medicamento. Fui finalmente atendido. A senhora graduada em medicina, depois de uma rápida sessão de perguntas, me receitou novalgina e algo para o nariz que já não recordo o nome. Assim retirei-me do consultório pouco mais de 10 minutos depois de entrar no posto, algo que acredito raramente ocorrer com qualquer digna pessoa que necessite de uma consulta médica do sistema público. Aterrorizante pensar.

Ao sair do lugar, agradeci ao segurança e pedi-lhe desculpas pelo mau-humor com o qual me dirigi a ele, pela rudeza e frieza que mediaram todo o contato que com ele estabeleci. E só então me dei conta: todos naquela repartição de saúde foram frios, indiferentes, distantes, patéticos, apáticos, e insensíveis comigo. Médicos, enfermeiros, burocratas, todos vazios. Evasivos. A única pessoa sensível e humana naquele lugar onde os seres humanos vão para ser tratados, curados, cuidados, o único ser humanizado naquele momento e lugar, era o responsável pela ordem, pela seguridade, era a representação do sistema de coerção, da força: o guarda! E nem mesmo era um guarda governamental, com garantias, salário estável etc, e sim o empregado mais precarizado e inseguro de todos, era um guarda terceirizado!
Deixo aqui, com este homem que não sei o nome e que certamente nem imagina o tipo de agitação promoveu em meu espírito combalido nesta tarde, minha mais sincera consideração de estima e admiração. Com ele aprendi mais das contradições do mundo. Com ele aprendi que mesmo derrotados, nunca estaremos vencidos. Com ele aceito cada dia mais a idéia de que o ser humano pode ir muito, mas muito além daquilo que fazem dele. Seguindo aquela bela imagem de Drummond, outra flor nasceu no asfalto...

Um comentário:

Unknown disse...

simplesmente esta postagem é precisa demais para passar desapercebida, principalmente por mim, que nasci com este olhar crítico demais para este mundo...

saudações cordiais.